quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Carta de um Veterano

As palavras a seguir são parte introdutória do registro de escritos do mais nobre veterano do exército dragoriano, o rei Belthasar Ganfourt, também conhecido como “Grande Leão”.

(...)



O homem acredita ser soberano neste mundo. Pobres coitados, isso sim é o que são. Aliás, é o que somos, pois por mais que me chamem de leão, não sou de fato um felino.

Monstro. Outra bela definição para o homem. Não me entenda mal, mesmo um monstro possui virtudes. Gigantes e dragões são provas vivas disso.

Ah, sim, o homem... estava a falar dele, certo? Minha mente sempre embaralha os pensamentos quando estou a refletir sobre minha raça. Talvez seja pela a aversão que criei por alguns sujeitos, ou pelo fato de meu velho e cansado cérebro já estar começando a pregar-me as peças que a vida nos reserva para esse fim de jornada.

Sim, é o fim da minha aventura, eu posso sentir. Não sei se é pela idade avançada, mas tenho me portado de maneira mais questionadora ultimamente, sempre pensando em questões sem uma resposta definitiva. Perguntas que os filósofos fazem durante toda a vida, mas que a maioria das pessoas só pensa quando está ociosa demais ou prestes a morrer. Como por exemplo, a indagação:

Por que diabos a vida é assim?

A morte nos aguarda desde o momento em que nascemos. Por isso fazemos tudo que nos cabe nesse pequeno período que separa o primeiro choro e o último suspiro. Mas vos digo que depois de muito pensar e vivenciar, cheguei à conclusão de que a ordem das coisas está certa, embora eu tenha passado minha vida acreditando que estava errada.

Nascemos e temos todos os nossos sentidos em perfeito estado. A cada nova descoberta o mundo se recria diante dos nossos olhos, e assim experimentamos a vida todos os dias. Com o passar dos anos, passamos a conhecer faces dela que não são assim tão belas, e percebemos que a mesma mão que acaricia, é capaz de empunhar uma espada, e os tempos de inocência ficam para trás. A obrigação do trabalho e a espera pelo ócio passam a fazer parte da rotina diária. Quando menos perceber suas vistas já não enxergarão tão bem, e seu estômago já não irá digerir aquela refeição deliciosa com a mesma eficiência. Seus braços já não serão tão fortes e suas pernas mal aguentarão o peso do corpo. 

Quando a areia da ampulheta chegar à metade, seu corpo nada mais será que um recipiente gasto, portando uma alma que muito almeja o infinito. No entanto afirmo que, na velhice, ciente de que cada momento pode ser o último, me dei conta do porquê de as coisas serem de tal modo. Não posso tentar explicar-lhes com a pena e o papel, por vários motivos. Um deles é que eu não saberia como fazê-lo de forma plena, e outro é que seria uma falta de respeito para convosco tirar-lhe o prazer de descobrir certas verdades por conta própria. Mas vos digo que mesmo as doenças e complicações da velhice fazem sentido agora. Pois a cada dia que passa, menos estou preso à esta vida. A dor aguda de facas penetrando em minhas costas é contínua, mesmo que não haja uma única lâmina, e meu estômago, que antes aguentava quase um javali inteiro, hoje se enrijece como uma pedra só de ter de processar alguns pedaços de carne. Acreditariam se eu dissesse que houve época em que eu comia cinco pernis inteiros de uma só vez? Enfim, a vida me tira alguns prazeres como que preparando minha alma para se desvincular deste corpo, dizendo:

“Terás que partir em breve, e é por isso que lhe tiro aos poucos as coisas das quais mais gosta ou precisa. Adiciono um pouco de dor a cada dia, para que não tenha mais essa vontade excessiva de continuar aqui para sempre; para que o dia da partida seja um alívio, não um amontoado de pesares”.

Antes de entender isso, admito que passei um bom tempo como um velho rabugento, mas hoje estou totalmente preparado para quando a morte vier abraçar-me. Basta ela me guiar, irei de boa vontade. Aliás, se ela quiser ir conversando comigo durante o percurso ao mundo das almas, serei de todo atenção, tenho muitas perguntas a fazer. 

Parto de bom grado, não por desgostar deste mundo, até porque isso não é verdade, mas meus cabelos brancos, minhas rugas e minhas dores denunciam que já passei tempo demais aqui.

Então, antes que eu parta, pretendo compartilhar todo o conhecimento que adquiri sobre técnicas de combate e estratégia de guerra, para que se preparem caso nossos vizinhos arrogantes se assanhem novamente.

Sinto que é meu dever passar minha experiência adiante, pois apesar de nossa carne apodrecer, nossas palavras ficam. Mesmo das mãos que escreveram e já foram comidas pelos vermes embaixo da terra, passam as palavras que olhos ainda vivos lerão.

Agradeço a todos os amigos e companheiros que me suportaram durante minha jornada, especialmente à minha esposa, Luccia Jahome Ganfourt, pelo companheirismo, amor e paciência. Ao meu filhote, Richard Ganfourt, que é indubitavelmente o mais inteligente felino-homem deste mundo, e aos meus leõezinhos, Kaluh e Toliel Ganfourt, por serem duas pestes adoráveis.

Introdução e Agradecimento / Crônicas de Guerra - Técnicas de Combate: da Adaga ao Machado Duplo, por Belthasar Ganfourt I, O Leão

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